quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

"- Que coincidência!..."

Chega um tempo aqui no semiárido em que as frutas abundam. Mangas, goiabas, cajus (quase dois terços do pedúnculo desperdiçados), cajás, siriguelas, umbus chegam a fazer lama.
Fartura que levou os órgãos de assistência técnica, as entidades e instituições que acompanham a agricultura familiar a procurar meios que permitissem seu aproveitamento, agregando valor e gerando renda para agricultoras e agricultores, possuidores já de receitas de doces, sorvetes, geleias, algumas gozando até de justa fama. 
Capacitações em processamento, boas práticas de fabricação, organização e gestão deixaram um saldo de empreendimentos aptos a fornecer produtos de qualidade, com sabor local, conquistando clientes. Uma das estrelas, as polpas de frutas, cujos ingredientes estavam ali disponíveis pelo custo da coleta.
No uso de suas atribuições, em 15 de março de 2000, a ANVISA publica a RDC nº 23, que dispõe sobre "Procedimentos Básicos para Registro e Dispensa da Obrigatoriedade de Registro de Produtos Pertinentes à Área de Alimentos". Nesta resolução o produto "polpa de frutas" é dispensado da obrigatoriedade de registro, com o código 4300181. Uma situação que atendia as necessidades da agricultura familiar, permitindo a regularização de seus empreendimentos sem grande burocracia.
Com o surgimento do PAA, em 2003, a polpa de fruta foi um dos campeões de venda da agricultura familiar nesta modalidade, permitindo o melhoramento e ampliação de suas estruturas produtivas, com vantagens para os produtores e consumidores.
E muitos estudantes tiveram saudável melhora em suas merendas, livrando-se dos preparados sólidos artificiais para refresco, de sabor padronizado e nulo valor nutricional.
Os bons resultados das operações do PAA levaram o governo federal a determinar que no mínimo 30% dos recursos repassados pelo PNAE para a alimentação escolar deviam ser comprados diretamente da agricultura familiar. Um mercado gigantesco e já com dono.
Neste momento aparece uma nova regulamentação para a polpa de fruta. Com o decreto nº 6871, de junho de 2009, que atualiza a regulamentação da Lei 8.918/1994, a polpa de fruta foi considerada bebida, sendo portanto obrigada ao registro do estabelecimento e do produto no MAPA. A quase totalidade dos empreendimentos da agricultura familiar dedicados à sua produção ficou na ilegalidade. 
Fácil de imaginar as consequências.
Algumas entidades executoras do PNAE ainda lançaram chamadas públicas considerando os termos da Resolução nº 23/2000.
Mas, superando uma histórica falta de fiscais agropecuários, o MAPA empreendeu uma eficiente ação de visitas aos empreendimentos da agricultura familiar, comunicando-lhes sua inadequação à legislação, portanto sem condições de acesso ao mercado. Orientavam sobre os passos necessários para registro do estabelecimento e dos produtos, uma via sacra burocrática custosa em tempo e dinheiro. Para alegria das delvales (CocaCola) da vida, que comemoraram o afastamento de tão incômodo concorrente.
Pois é. Como o Ciro Monteiro já descobrira no velório de um sambista lá pelos anos 1950, não era uma 'coincidência'.

ANVISA - Agencia Nacional de Vigilância Sanitária <> RDC - Resolução da Diretoria Colegiada
PAA - Programa de Aquisição de Alimentos <> PNAE - Programa Nacional de Alimentação Escolar
MAPA - Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento